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Sergio Paulo Rouanet

 

Certas pessoas dispensam apresentação. Não há nada mais irritante que o velho lugar comum segundo o qual certas pessoas não precisam de apresentação. Em geral, essa afirmação, ou denota preguiça, servindo como pretexto para não pesquisar o currículo de quem deveria estar sendo apresentado, ou é propaganda enganosa, alimentando, no ouvinte ou no leitor, a esperança de que não haja mesmo apresentação, falsa promessa logo seguida por uma apresentação mais longa do que desejaríamos.

 

Dito isso, devo confessar que não me ocorre meio mais verídico de começar meu texto: tenho que dizer que Lêda Watson não precisa de apresentação. Todos sabem que ela é hoje uma das gravadoras mais eminentes do Brasil e uma das de maior repercussão internacional, com uma trajetória que vai de Paris, onde ela estudou com Johnny Friedlaender, à América do Sul, América do Norte, Europa e Ásia. À sua reputação de artista, acrescenta-se seu prestígio como docente, graças aos cursos de gravura em metal que ministrou em Brasília, em Lima, em Manágua, na Costa Rica, no Panamá e em Caracas, e como administradora cultural, área em que ela adquiriu grande experiência em cargos, como o de Coordenadora do Programa de Museus da Secretaria de Cultura do Distrito Federal.

 

Mas se ela não precisa de apresentação, o leitor tem direito de saber por que, então, estou escrevendo este texto. Os motivos são mais biográficos que artísticos. Barbara e eu conhecemos Lêda no início dos anos 1970, quando ela tinha acabado de voltar de Paris, onde tinha dado seus primeiros passos no atelier de Friedlaender. Linda, cheia de vida, com grande curiosidade intelectual, Lêda já era, em embrião, a grande artista que ela se tornaria depois. Os dois casais (na época, Lêda era casada com o diplomata Sérgio Watson) faziam excursões pelo cerrado, improvisando serestas e pernoitando em tendas. Não seria nesses passeios que ela aprendeu a amar o céu de Brasília – “o céu de Brasília”, escreve ela nesse livro, “me deslumbrava ao entardecer dos dias secos” – e a conhecer de perto a natureza do Planalto Central, tão decisiva para sua obra? Não seria a lembrança dessas excursões, em que ela estabeleceu contato imediato com a vegetação do cerrado, que teria entrado em sua arte, toda ela feita de folhas, de galhos entrelaçados, de raízes? É uma arte orgânica, vegetal, através da qual perpassam, sobre um fundo policrômico, figuras fugidias, em que julgamos adivinhar úteros, fetos, cordões umbilicais.

 

Que a arte de Lêda seria uma interiorização metafísica dessa flora é apenas uma hipótese. Mas que há uma constante inquietação filosófica em sua obra não é uma hipótese, mas um fato, que transparece nos títulos de suas gravuras. Tenho, em meu apartamento, uma gravura dos anos 1970, belíssima, a que ela deu o título O processo do infinito. Num certo sentido, o infinito define o horizonte de sua busca e de sua experimentação estética. É uma arte que capta momentos e também emoções – nome de duas séries de suas gravuras –, mas que exprime também ideias, tendo, como foco, em grande parte, a noção de infinito.

 

Pois, para Lêda Watson, não há incompatibilidade entre a razão e a especulação, por um lado, e a emoção, por outro, como não há incompatibilidade entre inspiração e técnica. Ela sabe que arte é trabalho, é paciência, é domínio do ofício, é manejo seguro do buril, é utilização profissional da técnica da gravura – água-tinta e água-forte –, e só assim a emoção, por mais sincera que seja, e a ideia, mesmo a mais profunda, poderão chegar à sua mais perfeita expressão. 

 

Sim, não há dúvida de que esse livro atingirá seu objetivo de passar adiante o saber e a experiência acumulados por Lêda Watson há tantos anos, contribuindo, e muito, para o aperfeiçoamento artístico das novas gerações. Ah, e antes que me esqueça: que tal retomarmos, um dia, nossas serestas de 30 anos atrás?

 

(texto escrito por ocasião do lançamento do livro

Sonhos, momentos, emoções: técnicas e gravuras. Brasília, 2008)

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