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José Guilherme Merquior

 

Por que tanta arte contemporânea parece aspirar às formas nascidas do acidente ou do secreto crescimento orgânico (às microformas de mamãe natureza)?

 

O caso de certa gravura nos impede de falar logo em “recesso do humanismo”, pois a gravura interpõe enorme dose de cálculo na inspiração “inconsciente” e na forma-resultado. Foi possível chegar depressa a uma action painting; mas como instituir verdadeiras técnicas de “deflagração”, como celebrar autenticamente o rito da imediatez expressiva numa arte tão comprometida com “estados”, isto é, visceralmente refletida e gradual? Restava explorar a sedução da matéria por meio da mais requintada cuisine da estampa colorida: precisamente, o que fez o grande Friedlaender, mestre de Lêda Watson. Mestre, porém, de métier, não de estilo, nem de composição. Se, nas agua-tintas de Lêda, se faz sentir a sugestividade cor-textura, como em Vôo noturno; se, nas agua-tintas, também se cultivam o nodoso; o granulado; os efeitos de solo e de pele, de folha e de membrana; certo grafismo; o sombrio dos tons-pastel; e, sobretudo, a representação de fantasia (árvore, planta, pássaro?), presença icônica do que a autora chama de lembranças de outro mundo, as gravuras de Lêda já se situam (afora um ou dois puros exercícios de textura) no território ambíguo do entre textura e figura.

 

Mas é o próprio gravar que co-motiva o figurar, como se vê claramente nos Caminhos de um pavão: é o gravar amoroso, convicto e obstinado que “desrealiza” as mesmas alusões surgidas, até conferir-lhes aquela qualidade perturbadora que Focillon descobria no fantástico exato e frio das gravuras de Meryon: “La réalité du dépaysement”.

 

(texto de apresentação de exposição individual realizada em 1974, em Brasília,

na Galeria Múltipla, de Maria Ignês Barbosa)

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