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Marly Oliveira

 

De certa forma, a meu ver, toda obra de arte é um autorretrato, uma revelação de consciência, que desafia o conceito, pois faz apelo à subjetividade daquele que o interpreta. Um autorretrato que não permanecesse imóvel, nem incomunicável, mas que se objetivasse (no tocante às artes plásticas) numa eclosão do visível. No caso de Lêda Watson, já de antemão levando em conta o alto nível técnico louvado por toda a crítica, a sequência das gravuras que ora se expõem nos pode permitir uma leitura menos pretensiosa, sem que se torne supérfluo, quem sabe, o comentário. 

 

Não deve ser por acaso que um dos “momentos” tem o título de Reflexão, nem por acaso que cada gravura tenha um título poético, fragmentado, às vezes, em várias gravuras, como a série que compõe E os pássaros cantam quando a tarde anuncia o silêncio da noite em paz. À essa fase, se segue a trilogia Ontem, hoje, amanhã, com a pujança do vermelho e do laranja, passando pelos verdes e azuis até chegar ao marrom (é uma lua vermelha). A escolha da linha curva, tortuosa, labiríntica, desde o começo, já agora, permite o aflorar de toda uma simbologia de que a figura do círculo (a lua ou o sol) é o grande exemplo milenar. 

 

A sucessão temporal dá lugar ao Renascer e a uma Busca de amor, que faz, da natureza amada e contemplada, emergir a criatura humana e suas Emoções. Como num longo processo de individualização e de conhecimento, pode ocorrer a integração entre as partes cindidas da personalidade ou, quem sabe, a reunião entre os seres que existem (o masculino e o feminino) na nostalgia de cada um de nós. Como se caminhasse para um clímax, alta, desnuda, livre, surge a figura humana, já despendida pela natureza, em plenitude de paixão, de atração, passando para a conquista (ou sedução) e a fusão. Este é um momento de esplendor, que a magia da gravadora configura na conjunção amorosa, cuja transparência nos põe diante do eterno mistério: a vertigem do eterno. 

 

Nenhuma impropriedade, nem elegância fácil, nem a solenidade do suntuoso. Disciplina, rigor, aprendizagem de muitos anos no Brasil e na Europa, convívio com Friedlaender, não explicam a magia hierática destinada ao espetáculo do mundo, mas dele impossível de ser dissociado. A vontade criadora propusera uma visão da natureza (que alguns associam ao cerrado); o dom da artista a interioriza, tornando-a sua (e nossa); o talento a edifica numa forma de expressar, polifônica e polissêmica, que o registro intelectual se mostra insuficiente para aprender.

 

A crispação angustiada cede passo a uma expressão mais tranquila, apesar da constatação de sucessividade temporal. Não é a morte, mas um renascimento, que vem coroar a série que vai desembocar no amor, fechando um ciclo de desencontro, de encontro, de amor e de ódio e de delicada simetria, na lasciva. Fascinante e bela essa viagem de si a si mesma, de quem constrói, com mãos firmes, seus próprios alicerces e sua glória.

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