top of page
Bené Fonteles

 

É noite, ainda estou sob o forte impacto da visita a seu atelier neste final de tarde, já trazendo o frio e a secura de maio para o cerrado. Bioma que você tanto ama e é forte inspiração para suas gravuras.

 

A sensação da visita traz a presença de seres imaginários numa fábula nunca a mim contada. Seres que nos invadem mais a alma que a mente e me fazem possuir uma nova forma de ver e de pertencer ao mundo. Suas gravuras grávidas deste fabulário fantástico estão carregadas da organicidade onde a simbiose da flora e da fauna do estranho humanizam a paisagem e trazem uma outra compreensão e recriação da natureza nunca dantes vislumbrada na gravura brasileira.

 

São várias as dimensões e transparências criadas pelas ricas texturas, com as quais tu trabalhas com afinco de exímia artesã, permanecendo sempre fiel a uma das mais antigas técnicas gráficas do século XVII, criada, então, pelo genial Rembrandt. É essa mesma técnica de gravura em metal que se perpetua nos ateliers de tantos artistas gravadores pelo mundo que tu honras com a mesma precisa alquímica e invenção do mestre holandês.

 

Com estas gravuras – quase à maneira negra, em Sfumato e Mistério –, é que tu alumbras e educas nossa percepção e sentidos ao revelar a paisagem bela, seca e tosca do cerrado – quando te inspiras no entorno de Brasília – e estais muito mais que só a nos cobrar a acuidade de uma mera apreciação estética. Tuas gravuras emanam uma forte energia telúrica, só concebível no ser mulher por ser o próprio bojo e fonte da criação. E esta energia vinda da Terra não se origina só pela densidade do grafismo, ou pelo muito que colocas de si e da emoção da vida intensa que carregas, ou ainda, pelo dedicado fazer de artesã que grava e imprime suas próprias crias.

 

Há um tudo, um quê de mistério que ainda não deu de discernir de todo. Talvez nem careça, por mais que se alongue o deus do tempo. Há coisas e seres que se deve deixar no estado do encantamento, para não perecermos na crua realidade. Para isso, existe a arte da tua obra – assim já se pode chamá-la –, decorridas quatro décadas nas quais você seguiu gravando com obsessiva dedicação, além de passar, de forma tão generosa, clara e didática, as conquistas técnicas de seu ofício para uma outra geração de artistas.

 

A mostra que a Caixa agora lhe dedica é mais uma homenagem em que és convidada a mostrar uma pequena suíte de gravuras, falando um pouco do passado, do tempo e do quanto tu amadurecestes com ele. Teu saber tornou-se de apurado e gostoso sabor, como o são as melhores e mais antigas safras dos vinhos tintos que nos lembram a cor que imprimes no que gravas.

 

Fica também o anúncio do Museu de Arte de Brasília (MAB): o Gabiente de Arte sobre Papel Lêda Watson. É muito merecido, porque fostes a fundadora, servistes ao MAB com grande dedicação e, por isso também, nos causa imenso prazer ter teu nome ligado à história do museu. Esperamos também que lances teu livro sobre técnicas de gravura, a partir da construção sábia de tuas obras, em nosso novo espaço museológico, com uma mostra tua.

 

Portanto, ao vermos, nesta exposição antológica, um pouco do que foi feito por ti nas últimas décadas e, ainda, a recriação e o aproveitamento das provas com as quais desconstroi gravuras para criar uma nova, original e única peça, temos a certeza de que estamos diante de uma artista que não comete o mais grave pecado na arte: copiar a si mesma.

 

Estamos diante também de uma imensa grandeza humana e de uma farta força poética advinda do teu poder criativo. Contemplando com emoção tuas gravuras e montagens, vejo aprendizados de sabedoria que me tornam ainda mais consciente do papel da arte na construção de um ser essencialmente e potencialmente humano.

 

Essas são as coisas que enobrecem o que em mim é mais do que visível num artista. Miro também no invisível, coisas que não cabem no chão raso das plantas.

 

Carinho e admiração de seu irmão.

 

​

(apresentação do catálogo da exposição da Caixa Cultural em Brasília)

Bené Fonteles (1953). Artista plástico, jornalista, editor, escritor, poeta e compositor

bottom of page